domingo, 9 de julho de 2017

O MENOR DO PEDAÇO

Estava eu cuidando de minha própria vida, quando ao verificar minha Caixa Postal bati os olhos em um E-mail despretensioso, sem grandes apelos e que quase deixei de ler, pois parecia uma daquelas mensagens de propaganda. Porém, acabei lendo e para minha surpresa, se tratava de um convite para um evento na Itália.

De outras vezes, já havia sido convidado para encontros paralelos a Boat Shows, mas desta vez era para um Fórum independente. Respondi educadamente, agradecendo, pois, estava no Brasil e compreendi que o convite era para Comandantes nas proximidades.
Para minha surpresa, no dia seguinte recebi outra mensagem confirmando o convite, e que todas as despesas seriam pagas pelos organizadores, incluindo a passagem de ida e volta para Viareggio, além da hospedagem, traslado e alimentação.

Após uma consulta ao meu empregador, fui liberado a participar do evento e um mês depois eu estava arrastando mala no Galeão. Como sorte pouca é bobagem, ganhei upgrade e fui para a Europa de Business da Luftansa... sem comentários, por favor.

Bem, falei do milagre, mas não disse nada sobre o Santo. O evento foi o YARE 2017, um encontro de Comandantes de Superyachts patrocinado pelo Governo da Região Toscana e das províncias de Lucca, La Spezia e Carrara, juntamente com todos os principais estaleiros dedicados a reformas, visto que era esta a finalidade do encontro, criar um networking de Comandantes e prestadores de serviços, visando trazer negócios para a região.

Evidentemente, o Iate que comando estava bem deslocado, seja devido a distante localização, seja pelo tamanho. Noventa pés é um tamanho de barco bastante considerável no Brasil, mas no Mediterrâneo era apenas um bote. Meus colegas comandavam, em sua grande maioria, Iates de Charter de 40 a 70 metros de comprimento. Encontrei alguns ingleses, muitos Ucranianos, Russos e Croatas, pois os barcos alugados para clientes russos estão em alta na região. Poucos norte-americanos e canadenses, assim como espanhóis e alguns poucos exóticos como eu, um libanês, uma única mulher comandante dinamarquesa, que opera um barco no Senegal e claro, muitos italianos. De brasileiro, somente eu e um colega, o Bustamante, que trabalha em um barco que circula entre o Caribe, Flórida e Mediterrâneo, que por sorte estava na Itália.

O evento começou sob um frio fora de época, pois abril já era para estar menos gelado. No primeiro dia, circulamos em dois ônibus lotados, por vários estaleiros. A infraestrutura disponível na região é algo estarrecedor, principalmente para quem quase não dispõe de meios de docagem. Lá, travel-lifts de 600 Toneladas se encontra em cada esquina. Docas secas, flutuantes, pontões e carreiras de todos os tamanhos, estão à disposição. A cada estaleiro, ouvíamos considerações, explicações e tirávamos dúvidas sobre as características do local. Isto sem falar em comidas e bebidas em quantidade, afinal de contas estávamos na Itália, e se há algo sempre colocado em primeiro lugar, isto é sempre a comida.

Sinceramente, focaccias recheadas de Parma e tomate cereja são uma delícia, mas o Maestrale de vinte nós transmitia uma sensação térmica de zero graus, o que tirou muito do prazer da visita.
Retornando ao Hotel UNA em Lido Dei Camaiore, continuação para o Norte de Viareggio, encontramos mais comida e bebida, no que chamaram de Welcome Cocktail. Afinal de contas, o expediente já havia encerrado. Evidentemente, eventos de finalidade comercial são organizados como tal. A bebida foi fornecida pela Hennessy, e baldes de Moet Chandon cercavam o salão, assim como material promocional de várias empresas da região. A música ficou por conta de um excelente grupo de Jazz, que se apresenta de forma privada em Megayachts, e um italiano septuagenário cantou todo repertório de Louis Armstrong, com incrível semelhança de voz. Pelo menos, pintou um risoto para esquentar a barriga.

No segundo dia, aconteceu um Fórum, onde os Comandantes expuseram suas dificuldades ao contratar reformas nos estaleiros, coisas totalmente fora de nossa realidade. Devido ao clima, é normal que os barcos façam pequenos reparos durante o inverno e o início da primavera, estas pequenas obras podem chegar, nos barcos de maior porte, facilmente a dois milhões de Euros. Veja que não estou falando de um refit ou rebuild, mas uma “obrinha” de final de estação!

Os mediadores tiveram bastante trabalho para aplacar certos ânimos, e um colega egípcio chegou a lançar um pequeno manifesto, reclamando de taxas de retirada de lixo para lá de abusivas, elevados custos de calefação nos galpões, que recebem barcos de centenas de toneladas de arqueação e outras coisas bem fora de nossa realidade.

De noite, rolou mais um jantar, desta vez em um antigo convento do século XIII, bancado pelo Estaleiro alemão Lürsen, o problema mais uma vez foi a temperatura, pois foi tudo servido ao ar livre e dois graus não tem graça alguma!

No terceiro dia, o enorme salão de convenções foi coberto por mesas de trabalho, cada uma reservada a um Capitão, com duas outras cadeiras para receber os patrocinadores cotistas do evento. Antecipadamente, tivemos de escolher um mínimo de 25 empresas dentro das mais de cinquenta participantes, e a cada período de vinte minutos, tocava um gongo e recebíamos uma nova dupla de “vendedores” de serviços. Recebi empresas de comunicação satelital, fornecedores de artigos de couro, roupas de cama, tintas, serviços mecânicos, marinas, estaleiros de reparos, agentes e fornecedores de catering para Iates. Realmente, no início parecia que o evento seria o que no turismo se chama de fan tour, porém o ritmo e o grau de exigência foi bastante alto e as cifras envolvidas deixaram bem claro, que ali estávamos todos para trabalhar. Conversas em inglês, italiano, francês e alemão eram ouvidas por toda parte.

Como encerramento, após um dia bastante cansativo, jantamos no Iate Clube de Viareggio, e me mantive fiel a meu grupo preferido de Comandantes, liderados pelo Igor, um experiente Capitão russo de 65 anos, e dono de um curriculum invejável. Os quase setenta comandantes participantes o elegeram nosso “Almirante”, além dele e do Bustamante, faziam parte um Capitão esloveno bem mal-humorado, um jovem croata de um megayacht de 43 metros, um canadense e o libanês.

No derradeiro dia, fizemos atividades recreativas. Um grupo subiu as colinas de mármore de Carrara (as colinas são literalmente de mármore) em veículos 4X4 e outros foram a Lucca, conhecer sobre o maestro Puccini. No almoço, um bufê para lá de Russo, com blinis e caviar de salmão, ostras, espumantes e claro, a tradicional italiana focaccia com Parma e funghi.

Depois de tantos super e mega Iates, pode parecer que fui o menor barco do evento, o que é praticamente a verdade. Quando nas rodas de conversa, vinham as perguntas sobre o tamanho do barco, e eu dizia que era um trawler de 90 pés, ninguém dava muita atenção, mas quando ficavam sabendo que já havíamos estado do Mediterrâneo duas vezes, e que tínhamos realizado as travessias, sem o auxílio de um navio-doca, a coisa mudava de figura. Acabei percebendo que eles, por maiores que sejam seus iates, costumam circular por perto e que suas “travessias” não chegam a três noites de duração. Posso ter ido com o menor barco, mas ninguém “tirou farinha” da gente!


O Gattina tem 40.000 milhas náuticas em seu curriculum, nada mal.